Sexta-feira, final do dia ainda com sol. O bastante para aquecer o coração.
Cansada, com a missão cumprida, embora ligeiramente desapontada com os últimos dias, triste com a natureza humana que as vezes teima em não evoluir, desejosa de voltar a casa e sedenta do meu porto de abrigo.
Cheguei estação, faltavam apenas 9 minutos para entrar no comboio. Foram só 9 minutos, os suficientes para me deixar de coração apertado durante as 3 horas de viagem.
Um labrador branco deitado no chão, cativou o meu olhar pelo seu ar doce e sereno.
Em segundos percebi que este anjo da ternura era um guia de uma menina aparentemente tão doce quanto ele.
Ela não teria mais do que vinte anos, cabelos longos cor de mel, vestia jeans e t-shirt, nas costas uma mochila com um peso visivelmente considerável, na mão direita a trela daquele que parecia ser o seu único amigo, e no rosto, lágrimas. Lágrimas difíceis de controlar que lhe faziam tremer o tronco. Percebi nesse momento a verdadeira dimensão do peso da sua mochila. Afinal não era bagagem, era tristeza. Muita.
Estava sol, bastante até, que aquecia todos os que estavam na estação e que protegiam a vista com óculos de sol.
Ela não via o sol. Aliás, estou certa que naquele momento não haveria sol que a aquecesse.
Ela talvez nunca vira o sol ou a lua, e eu talvez nunca me tenha lembrado da sorte que tenho.
Podia ser eu. Não me saía esta possibilidade do pensamento.
Vê-la só e em tamanha tristeza, estarreceu-me, queria mover-me, queria chegar a ela, dizer-lhe qualquer palavra que fizesse a diferença naqueles 9 minutos. Não consegui.
Outro ser humano que aguardava o mesmo comboio, chegou perto de si mais rápido e perguntou se precisava de ajuda. Ela recusou. Balbuciou que tudo estava bem e voltou a concentrar-se na sua tristeza, tentando limpar as lágrimas com a mão que não segurava a trela.
Um funcionário da CP aproximou-me e comunicou-lhe que a acompanharia a um lugar na primeira carruagem onde o seu anjo de quatro patas também pudesse viajar confortável. Ela agradeceu. E eu não consegui tirar os olhos da sua tristeza. Era grande demais, maior do que a sua mochila.
Entrei na carruagem 3, lugar 33, pousei a cabeça na janela e agradeci poder ver o sol desde o primeiro dia.
Pensei no melhor irmão que a vida me deu, também ele cego, que me mostrou a importância da gratidão e me deu a maior lição da minha vida. Pensei que a genética podia ter-me presenteado a mim com um glaucoma. Pensei tanta coisa, mas pensei sobretudo nela e na sua tristeza. Não pelo prazer da curiosidade mas pela necessidade que senti em percebê-la. Estaria triste assim porquê, talvez desiludida com alguém, magoada, passaria necessidades?... Tenho a certeza que não era por não ver o sol, porque eu sei quão forte ela seria, eu tenho a certeza que teria desenvolvido outras capacidades para entender o mundo sem imagens...mas também sei que estaria a sentir-se sozinha, desamparada.
Por detrás dos meus óculos de sol, escondi umas lágrimas que saltaram sem a minha permissão. Foram mais fortes que eu. Agradeci, agradeci muito por ver o sol, a chuva, as nuvens, o mar, o rosto da minha filha, os olhos do meu amor, as mãos do meu pai e ter o colo da minha mãe.
Agradeci por não me sentir sozinha rodeada por dezenas de pessoas numa estação de comboios.
Projectei-me naquele corpo e consciencializei-me que se fosse eu, nunca poderia ter estado a fazer o que fiz nos últimos dias e não estaria agora a regressar a casa e não teria a vida que tenho.
Esqueci o que me desapontou e entristeceu. Era absurdamente pequeno quando comparado ao que percebi naqueles 9 minutos.
Pus os auscultadores nos ouvidos e adormeci ao som de Birdy.
Quando cheguei tinha duas das pessoas mais especiais da minha vida à minha espera na estação.
Será que a menina que não via o sol tinha alguém há sua espera?....
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