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Eu e tu em Marrocos.

Eu vi o fim do mundo.
Ao chegar, Abdhul esperava-nos, sorridente e humilde. 
"Salam! parles vous francais? how are You?" Nesta tentativa cosmopolita de nos ouvir, agarrou as malas e voltou à fala inglesa com sotaque de Alá dizendo em modo feliz "Follow me!"
Perdi a conta aos passos, perdi a conta as vezes em que que viramos à esquerda, as vezes em que viramos à direita, às crianças descalças, aos burros que puxavam carroças, às motas em ziguezague, às bicicletas carregadas de especiarias e as vezes que Abdhul sorria para nós sem largar o passo acelerado como se quisesse encurtar o fim do mundo até ao Riad. 
Era a última porta de uma rua escura, estreita e fresca. Obrigou-nos a olhar e a ler a placa dourada pregada naquela porta de madeira incrivelmente trabalhada "Riad Ambre et Epices, voilà!"
Abriu a porta num som de quem abria um cofre e voilà: o fim do mundo acabou!
O silêncio e a paz eram a banda sonora de um paraíso de luxo, outrora casa de um qualquer marroquino endinheirado.
Aterrámos numa cama árabe e só nos lembramos no dia seguinte que o fim do mundo estava do lado de fora do Riad. Ainda do lado de dentro, Abdhul serviu-nos um majestoso pequeno almoço no terraço, debaixo de um sol que não existe na Europa, e o meu organismo percebia agora que teria de se adaptar a tantos odores e sabores durante os próximos dias.
François, dono do Riad, um francês que há muito tempo teria voltado costas a Paris e decidira começar de novo, ali, em Marraquexe, onde ninguém lhe faria perguntas, onde o fim de mundo para ele seria o início. Aproximou-se simpático e comunicativo, pousou o mapa aberto em cima da mesa e  em poucos minutos percebemos como sair dali, como voltar ali e onde ir por ordem decrescente de interesse e longevidade. 
Como que por magia, bastou uma vez para aprendermos quantas vezes deveríamos virar à esquerda e quantas à direita, descobrimos atalhos que nos levavam todos ao mesmo sítio. Toda gente se perde em Marraquexe, mas toda a gente se encontra no mesmo sítio, onde todas as ruas desaguam. E aí todos tomavam chá vertido em bica sem medo de alturas, uma água de estranha cor caída de um bule divino pousado no céu, inclinado por um Mohamed qualquer, até encher um copo de vidro pousado num pires de prata.
Vi uma cidade toda vermelha, vi miséria, famílias de cinco numa mota, vi centenas de pés sujos, autocarros cheios de marroquinos e vazios de oxigênio, talhos em modo tenda onde as moscas tomavam conta dos nacos de carne e as galinhas ao fundo, vivas, presas em amadoras gaiolas, esperam ser degoladas pelo dono da tenda e entregues a mulheres tapadas da cabeça aos pés em troca de vinte ou trinta dirahms.
Mas também vi Bentley's, a Zara, a Lacouste, o jardim do Yves Saint Laurent, comi em restaurantes de luxo rodeada por marroquinas capas da Vogue escondidas em óculos de sol Chopard e Louis Vuitton a tira colo. Tudo era verdadeiro. Tão verdadeiros eram os seus acessórios como a miséria dentro da Medina.
Os finais de tarde dentro da piscina marroquina no pátio do Riad faziam esquecer que à nossa volta nada era levado a sério, excepto o ecoar das vozes que rezavam virados para Meca de joelhos no seu tapete individual. 
Eles não querem saber se a água é escassa, se dois banhos por mês é pouco, se os ovos apodrecem ao sol, se as moscas pousam no pão pousado no balcão horas a fio há espera de quem chegue com Dirahms, eles não dão prioridade a quem vem da direita, ou melhor a quem vem de todos os lados ou mesmo do céu. 
Eles não querem saber porque eles têm o pôr-do-sol mais bonito do mundo.
Nenhuma fotografia foi capaz de captar tudo o que acontece nesse momento. Nenhuma. 
Restaram-me apenas os sentidos, para sentir no rosto o vento fresco do final do dia, o olhar para tamanha alegre confusão na praça de Jemaa El Fna onde se ouviam as flautas que encantavam serpentes, tambores vibrantes, e vendedores sempre a sorrir, Abdhuls e Mohameds que nunca saberão que há mais para além do fim do mundo. Guardarei para sempre em mim o som que voava dos altifalantes espalhados pela praça quando sol começava a descer e as vozes rezavam perturbadoramente a Alá. E eu agradecia. Grata por poder assistir ao pôr-do-sol mais bonito do mundo e saber que tudo era temporário, mais tarde ou mais cedo, voltaria à Europa. E o fim do mundo ficaria lá, tal como o nosso Abdhul, a quem eu tinha uma vontade constante em dar gorjetas na esperança que a sua vida melhorasse. Ridícula esperança a minha.
No dia da partida, Abdhul carregou as nossas malas até ao sítio da chegada e esperou junto a nós, feliz e humilde como sempre, que o transfer chegasse para nos levar ao aeroporto. Enchi-lhe a mão com as notas e moedas que me restaram e que de nada me serviriam na Europa. Já dentro do carro em marcha vi o Abdhul caminhar até à primeira tenda que encontrou e comprar qualquer coisa, que nunca saberei o quê, com os dirahms que a portuguesa lhe tinha dado... Senti tristeza, não sei bem explicar. Eu ia voltar à Europa (e que vida maravilhosa que eu tenho e às vezes até me esqueço!) mas fiquei com a sensação que o Abdhul nunca iria sair dali, nunca conheceria mais do que o seu fim do mundo, mais do que a miséria fora do Riad. Ele ficou a sorrir, e isso conforta-me. 
Chokran Abdhul. Chokran.




Chokran=Obrigada

Comentários

  1. Um retrato maravilhoso de um mundo aqui tão perto e de laços tão apertados que nos unem, mas teimamos em considerar um país árabe e logo perigoso, por conseguinte, fora de rota. Mas é um engano e por isso só fica a perder quem não quer conhecer. Parabéns, Vania, gostei muito.

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