Avançar para o conteúdo principal

Quando o meu dia é uma tourada.

Hoje percebi o que é verdadeiramente um espetáculo de tauromaquia. Exacto. Foi o meu dia.
Até acordar tudo permanecia igual, intacto e pacífico. Meia ensonada olhei o céu, alimentei-me normalmente como um toiro a quem é servido um pequeno almoço dito normal, para um dia normal. 
Pobre toiro que nunca sabe para o que vai.  
Depois de alimentada fui encaminhada até às imediações da arena. Tudo normal. O céu continuava azul. Em silêncio fui caminhando, devagar como um toiro, ganhando balanço para o dia.
Abriu-se a porta. Sim, a dos curros para a arena. Dei uns passos distraídamente. O silêncio unsurdecedor da arena que antecedeu a tourada instalou-se de forma tão mordaz, tão acutilante que apenas mereceu o meu maior fingimento de auto-proteção de que tudo estaria bem. Percebi pelo capote do novilheiro que provavelmente o dia na arena prometia.
Cavalos lusitanos, cavaleiros a rigor do alto da sua presunção, arrogância vestida a preceito, posturas de desdém de quem acredita viver acima, ser acima. Meu Deus, tantos carimbos de mestre e tanta pobreza de espírito. Perdi a conta às bandarilhas colocadas no dorso. Cada fio de sangue que escorria já era apenas mais um, do qual nem já me dava ao trabalho de fugir. Perdurava apenas a certeza que o dia iria terminar de qualquer forma e a soma das bandarilhas era apenas um detalhe.
Mas, quantos mais passos dava pela arena, mais surgiam forcados. Em fila indiana como manda a pega. Vi um de cada vez, a enfrentar o toiro incrédulo, um por um, tentava imobilizar-me. Pegas seguidas, irritadas, como se fosse esse mesmo o plano, imobilizar-me numa arena agora lotada de aplausos, clarinetes e gaitas desforradas com tamanho espetáculo.
Eu sabia que findo o dia, finalizado o espetáculo de tauromaquia recolheria aos curros para descansar e beber água e pacientemente eu mesma retiraria cada uma das bandarilhas.
A sensação de ter vivido um dia na arena fez-me investigar sobre o que acontece ao toiro no fim da tourada. Existem duas opções, como quase em tudo na vida: ou o touro segue para o matadouro no máximo em 5 horas, incluído fins-de-semana (adorei o detalhe), ou se o seu corportamento foi extraordinário, regressa ao campo para ser semental, vivendo o resto dos seus dias em liberdade, como prémio do seu comportamento.
Eu não sei se o meu corportamento foi extraordinário, e até dispenso adjectivos, mas voltei aos curros com a certeza de que não serão trajes presunçosos de toureiro ou bandarilheiros da Rua Sésamo que me levarão ao matadouro.



Comentários

Mensagens populares deste blogue

Residência alternada, amor permanente.

Quando apenas 182,5 dias do ano são contigo, metade da minha vida fica suspensa, à tua espera, durante outros longos e intermináveis 182,5 dias. Por amor abdico , contas feitas, de cinquenta por cento, para que vivas um pai e uma mãe, por inteiro, na percentagem total que te é devida.  Na matemática da vida, por não te ser justo subtrair, prefiro somar-te , dar-te o que é teu por direito à nascença, multiplicar-te momentos, afetos, casas, gente, partilhas, rotinas. Se para ti procuro somas e multiplicações, reservo para mim as subtrações e divisões.  Se isto não é amor, digam-me o que é! Sempre odiei matemática, temia talvez a dureza das equações da vida adulta. Dez anos depois, és claramente a expertise-de-como-viver-e-amar-em-dobro. Só eu sei e sinto, como precisas dessas duas metades para seres inteira, como absorveste dois lares e cada idiossincrasia de cada coração que te rodeia. Ainda assim, a cada sexta-feira da troca de ninho, ainda hoje a sinto como se fosse a...

Mãe de adolescente

Ser mãe de adolescente é ser convocada, não quando se quer, mas quando menos se espera; é oferecer os cromos do Lidl à criança atrás de nós na fila do supermercado, porque lá em casa o seu único destino seria o caixote do lixo;   é intuir que a nossa gaveta da maquiagem foi assaltada silenciosamente; é agonizar com a música da Bershka e sentir uma saudade nostálgica das idas aos ToysR’us, daquelas repletas de pedinchices, puzzles didácticos, amuos, beicinhos e barbies de pochete e tacão alto. Ser mãe de adolescente é sentir-se claramente a mais na friendzone , é perceber que a boleia de carro é substituída com preferência evidente por uma viagem de metro rodeada de amigos; é esforçar-se por entender o dialecto adoptado pela criatura que agora habita lá em casa, sem se sentir o sistema nervoso central a colapsar; é perceber quando tem de recuar porque o mau humor se instalou e quando tem de se aproximar porque o barco do amor atracou e desfrutar do desembarque o mais que c...

Ser mãe ou amiga?

O tema inquieta-me , porque me deixa vulnerável perante a possibilidade de estar a fazer tudo errado. Fico aflita, no sentido mais aflito da palavra porque temo as consequências de tudo o que fiz errado puderem tornar derradeiro um final infeliz e irrecuperável. Se calhar, se pudesse recomeçar bem lá no início da maternidade deveria fazer tudo diferente. Se calhar devia, mas temo, com toda a certeza, que seria incapaz.  Não me querendo desculpar mas aproveitando para me justificar, pertenço à geração X , ainda que do fim da mesma (1978), isto é, aquela que roça os Millennium’s. Aquela geração que jamais se repetirá, dizem os saudosistas.  Nascemos na era analógica mas fomos suficientemente inteligentes para aprender o digital.  Vivemos muito perto do abismo , sem cadeirinhas de bebé isofix ou cintos de segurança automóvel.  Saíamos de casa de manhã e voltávamos ao fim do dia, sem que os nossos pais sentissem necessidade de nos reportar à PSP como desaparecidos ....