Eu tinha 10 anos, acabava de entrar num colégio escolhido à minha revelia e iniciava o temido quinto ano sem nenhum dos amigos da primária por perto.
Estranhei tudo.
A natureza gigante que envolvia o meu estabelecimento de ensino anterior era agora substituído por betão, azulejos em altura e um recreio de cimento onde não era aconselhado correr pela probabilidade de esfolar os joelhos mesmo antes de alcançar uns míseros 100 metros.
O ambiente era da cor do betão, os professores eram muitos, eram altos e rígidos como o cimento. Os colegas de turma não tinham brincado na mata como eu, não tinham jogado à bola e à macaca em campos de futebol de perder a vista, não tiveram um lago cheio de patinhos que faziam qua qua debaixo das copas das árvores gigantes que ofereciam sombra a centenas de meninos e meninas na primavera e no verão. Estes novos colegas, por sua vez, viviam habituados a muitas salas distribuídas por muitos andares e apenas a duas saídas: o portão da frente que abria de manhã e de tarde e um portão traseiro que só abria ao fim do dia.
Tentei integrar-me, tentei perceber os professores, habituei-me. Foi o máximo que consegui.
Desse ano tenho poucas lembranças, exceto uma colega de turma, diferente de todos. Uma menina muito branquinha, cujo cabelo lhe tinha caído todo aos 7 anos, sem qualquer explicação médica. Uma menina que tinha uma peruca loirinha e um coração gigante. Tínhamos 10 anos, eu admirava-a pela maturidade e ela adorava a minha habilidade em fazê-la rir nos intervalos. Sem o saber na altura, usava o meu humor para me sentir integrada naquelas toneladas de betão e muito provavelmente ela usava a minha presença para aliviar o desgosto e a incerteza do seu futuro. Nunca esqueci, quando um dia me disse, totalmente segura das palavras que usou: "achas que algum dia algum rapaz vai querer uma namorada careca?" Não me lembro da resposta que lhe dei, só me lembro de terminarmos a conversa abraçadas, como se nos protegêssemos dos perigos de um terramoto debaixo de todo aquele betão.
Nesse ano, não fui uma aluna brilhante como os professores esperavam que sucedesse para manter a média da turma. Nem posso afirmar que tenham desistido de mim, porque no fundo senti-me sempre invisível. Com toda a certeza, fiz por isso.
Reprovaram-me.
Bastou um telefonema da freira que também era a diretora de turma, para informar os meus pais que eu teria que regressar à casa de partida, como se a vida fosse um jogo de monopólio. Tudo isto revestido de um gesto de misericórdia, próprio de um cirurgião à porta do bloco operatório: “ lamento, mas não a conseguimos salvar”.
Em casa, instalou-se o silêncio. As férias de verão estavam no início, e o silêncio permaneceu até meados de setembro. Altura em que me seriam dados os mesmos livros do ano anterior, folhas A4 em branco para recomeçar, mas sem direito a mochila ou estojo novos porque, claro está, eu não merecia.
Durante os 3 meses de férias fui um fantasma. O meu pai, austero e profundamente desiludido, escolheu em vez de umas boas chapadas, não me dirigir a palavra, não me olhar nos olhos, tornar-me transparente à mesa durante as refeições, na sala sentada no sofá, ou quando nos cruzávamos no corredor até ao quarto.
Durante 3 meses não existi. A minha mãe falava-me, mas baixinho e sem o sorriso com que me habituara. Qualquer demonstração de alegria entre mãe e filha poderia ser encarado pelo meu pai como uma afronta ou desobediência. Não fiz nada de relevante nesse verão. Não fui de férias para a aldeia dos meus avós, nem para outra qualquer parte desse planeta. Não saí de bicicleta ao encontro de amigos, nenhuma amiga lanchou lá em casa, não fui à praia, nem ao cinema.
Não fiz rigorosamente nada.
Durante 3 meses sobrevivi, como um recluso de elite, tinha direito às refeições, a uma cama feita de lavado, a higiene diária e um televisor com 2 canais e sem comando remoto.
Chorei horas a fio, pedi a Deus que o meu pai acabasse com aquela tortura e me enchesse de chapadas e nódoas negras com a fúria da fivela do seu cinto.
Nunca me tocou. Infelizmente, preferiu o silêncio: o mais cruel dos castigos.
Hoje percebo o propósito, o qual foi atingido, no ano seguinte fui das melhores alunas da turma. Aqui entre nós, não porque me tivesse esforçado muito, mas sim porque já sabia a lenga lenga do ano anterior, estava por isso em vantagem dentro da turma. Mas, embora fosse claro para todos que eu dominava a lenga lenga, não houve um telefonema da freira aos meus pais, admitindo que talvez até me pudessem ter salvado.
Bem, o propósito estava cumprido mas o método, aplaudido na altura, hoje seria condenável por todas as sumidades da psicologia ou pedopsquiatria em congressos internacionais ou workshops on-line.
O silêncio magoa.
O silêncio afasta, pune pelo desprezo, pela indiferença.
O silêncio quebra o vínculo, mata o amor.
Se este foi o método que ele encontrou para me dizer que o desiludi, conseguiu.
Ele só não previu, que o medo de desiludir se instalaria em mim, como uma pirografia - a arte de decorar madeira com marcas feitas pelo calor de um objeto pontiagudo.
E tão curioso que é, este termo vir das palavras gregas "fogo" e "escrita", tal e qual a natureza do processo.
Nunca esqueçamos que, quando o silêncio é escrito pelo fogo, a pele consegue regenerar mas jamais voltará a mesma.

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