Eu tive o privilégio de nascer em 1978.
Não vi o meu pai ser perseguido pela PIDE, nem precisar de licença para ter um isqueiro no bolso, acessório imperioso para um fumador de cachimbo, e deixem que vos diga que era um cachimbeiro cheio de classe.
Não conheci a censura na voz, na escrita ou nos gostos avant-garde para a época.
Sempre que passei por escolas com duas portas de entrada, questionava os meus pais porque raio meninos e meninas não poderiam aprender e brincar juntos.
A mim, nunca me obrigaram a cantar o Hino Nacional todas as manhãs antes de aula começar. (Bem, quanto a este detalhe, não seria mau de todo, talvez até se teriam evitado alguns embaraços no MotoGP em 2022...)
Ainda convivi com o Jesus Cristo pregado à cruz na parede da sala de aula, mas apenas porque frequentei colégios católicos. Louvado seja o Senhor que me poupou de dar de frente todos os dias com a fotografia de Salazar.
Eu pude usar bikinis desde o primeiro dia em que pousei os meus rechonchudos pézinhos na areia.
Eu pude ler todos os livros de banda desenhada que a minha estante albergava. Sou do tempo (adoro dizer isto, sinto-me experiente) do Super-homem e do Tarzan e deliciei-me com tudo o que o mundo Walt Disney me proporcionou.
Bebi a coca-cola toda que me apeteceu (alerta esquadrão das nutricionistas 2025!), muito embora, fosse a garrafa verde do Sumol de ananás o meu preferido.
Cresci, com a certeza, de poder escolher a profissão que bem entendesse, de poder viajar sem autorização de um marido, que por sua vez, só teria se o quisesse.
Este blog, onde agora mesmo o leitor perde alguns minutos do seu dia para ler tudo o que a mim me apetece escrever, não poderia existir. Qui ça, o livro que escrevi e publiquei teria que ter ficado guardado a sete chaves dentro do cofre de ferro herdado do meu avô, possivelmente adquirido por ele nos anos 30.
Este é o passado da "menina não tem quereres"! E parece-me que alguns homens e mulheres se tornaram saudosistas de um tempo que de bom não teve nada. Em 2025 assistimos a uma lamúria incoerente de gente equivocada que grita ao mundo certezas absolutas de prosperidade, segurança e felicidade, apenas atingíveis com uma inversão de marcha no tempo, sem rotundas para tal mas com traço continuo a precisar de ser pisado.
Não sentem, como eu, uma ingratidão atroz por parte desta gente?
Muitos, são esses filhos da liberdade, que agora caminham em manadas com altifalantes na boca, a vomitar falácias de conservadorismo saudável e promessas de salvação displicentes. Quão mal-agradecidos podem ser? Faltaram às aulas de história? Esqueceram-se de conversar com os seus pais e avós?
O contrário desta ingratidão não é ser crente que hoje tudo está melhor, porque não está. E, lamentavelmente, 50 anos depois, ainda há muito para fazer. Para melhorar. Para aperfeiçoar. Se há povo lento nas mudanças, aceitemos que são os portugueses, e mais vale aceitar mesmo, porque dói menos.
Eu aceito que estamos longe de uma civilidade do Norte da Europa, ou de uma educação pro anti-corrupção tipicamente sueca ou de uma organização fundada no respeito pelo outro, como uma sociedade japonesa. Estamos tão longe, que o meu pessimismo não me permite acreditar ser possível alcançar esses níveis de sabedoria.
Sabedoria e ingratidão não podem comer na mesma mesa, nem usar os mesmos talheres. Não os podemos encontrar no mesmo menu, por serem acepipes tão distintos e cujos preços não se enquadram no mesmo restaurante.
A sabedoria parece cara, mas só parece. Demora mais a fazer em lume brando, e o sabor final só se prova depois de todos os condimentos entrarem no devido início da receita. A receita parece chique com uma ou duas estrelas Michelin, mas o segredo está nos bons produtos, escolhidos a dedo, na paciência dos temperos e na atenção para evitar que o fundo se cole à panela.
A ingratidão, ah essa parece barata, mas sai muito mais cara. Um ingrato arrasta multidões equivocadas, a reclamar aquilo que lhes julgam ser devido. Por norma, curiosamente, os que agora reclamam, deveriam ter estado colados ao fogão, aprendendo a temperar e mantendo o lume brando, sem parar de mexer, para que o fundo não vire merda colada à panela.

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