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Sete anos depois de ti

                                                                                                          30 de Março de 2017

Ao meu pai
Avenida das Estrelas, nº ∞
0000-000 Lugar da Saudade


Pai,
Há sete anos que mudaste o nome da tua rua. Sete que mais parecem setecentos.
Dizem que a cada sete anos a vida muda. Melhor, a vida muda-nos. Trocam-nos as voltas, tiram-nos o tapete, roubam-nos o oxigénio, amarram-nos pelos pés de cabeça para baixo e esperam que a gente se erga.
Pelas minhas contas estamos na época da viragem. E sabes que mais, pai? Não quero nem saber!

Pai, se soubesses o tanto que já vivi, tenho tanto para te contar! Ou talvez nem precise.
Eu sei que muitos dos brilhos no meu olhar tiveram o teu dedo, tenho a certeza que naqueles dias difíceis, a luz ao fundo do túnel eras tu e que em todas as conquistas quando senti alegria a dobrar em forma de serenidade como se um abraço invisível me envolvesse, eras tu a brindar comigo cada vitória.

Talvez por estar quase assentar arraias nos quarenta, falta-me a paciência para prognósticos, para sofrimentos antecipados. Nos piores dias desejo estar de arraias assentados no mínimo nos setenta. Gosto de imaginar que para lá dos meus cabelos brancos e rugas dignamente instaladas se acabarão as ansiedades e obrigações da modernidade. Espero avidamente por esses dias em que a idade será um posto e não seremos mais obrigados a agradar a gregos e a troianos.

Queria dizer-te que continuo igual, mas não é verdade. A resiliência deu-me couraça. A solidão tirou-me o chão muitas vezes, mas a tua força chegou a mim em forma de mar, de sol, de uma música, de alguns anjos disfarçados de humanos. E lá fui andando estes anos, protegendo-me o melhor que sabia, errando a tentar acertar, fazendo o que o coração me dizia. Quase sempre. Excepto quando pensar com a cabeça era o melhor caminho. O mais seguro, pelo menos, aos olhos da sensatez que a vida me foi incutindo.

Há sete anos que quero pegar na merda do telefone para azucrinar a tua paciência, para te cravar mimo descaradamente, para te ouvir concordar comigo quando sei que tenho razão, para te avisar à ultima da hora que quero tomar café contigo no sítio do costume e tu apareceres em 15 minutos sabe Deus de onde e como.

Merda! Imagino-te no bem bom! Sereno, feliz, deitado numa nuvem a curtir o teu cachimbo. A gozares de fininho com a tua insuficiência cardíaca. Nada te perturba, nunca jamais nada te perturbará. E o “nunca digas nunca” aqui, definitivamente não se aplica! Só aqui. Por fim, fim! Fim das exigências terrenas, fim das cobranças humanas. Game over!  Dava tudo para ir aí fumar um cigarrinho contigo e voltar. Mas como já não fumo há dois anos, levaria antes um tinto. Às vezes imagino que vou, construo mentalmente os nossos melhores diálogos, ponho-te a par das novidades, fecho os olhos e ouço a tua gargalhada. Tento ouvir. Cada vez é mais difícil a minha mente reproduzi-la. Dizem que o tempo apaga a memória da voz dos que partiram. Sete anos depois, resta-me pouco. Começa a instalar-se o vazio. É como se estivesse agora a perder-te de vez. É a orfandade a ganhar terreno, como um movimento bruto de um carimbo com as letras maiúsculas a preto ÓRFàquando cai objectivamente sobre o canto superior da minha ficha de dados e deixa a marca de um rótulo para o resto da minha vida.

Às vezes dou por mim indignada com quem tem pai e não aproveita, não cuida. Chego a exercer alguma violência verbal imaginária sobre essas criaturas, gritando-lhes impacientemente que eu, cada vez que te quero perto apenas me resta um túmulo! Imagino-me a dar palestras por esse mundo, cujo tema é “Aproveita enquanto podes ó Burro!” Sala cheia, garantidamente, não achas? Eu sei que sim, afinal sempre foste um mestre das conversinhas “de pé de orelha”!

A poucos meses dos 39, sinto falta do teu colo. Aviso já que engordei ligeiramente e tenho a certeza que irias ser o primeiro acusar as gramas extra com uma das tuas piadinhas à furriel. Sinto falta das tuas anedotas, da facilidade com que tiravas a pinta a um bom filho da puta, de te ouvir dizer nos meus tenros 5 aninhos que “trabalho de menino é pouco, mas quem não aproveita é louco” cada vez que descalçava os teus sapatos e te calçava meigamente os chinelos no final do dia. Tenho saudades das zangas que tivemos, se fosse hoje faria ainda pior, devia ter-te enervado ainda mais! Tenho saudades da cumplicidade do nosso olhar, palavras para quê, quando éramos os dois feitos da mesma massa! Queria ter tido tempo para fazer mais memórias. Acima de tudo, sinto falta do meu pilar. Da minha raíz. Acredito que isto seja comum a todas as criaturas que perderam o pai ou a mãe. Ficar órfão aos 5, aos 30 ou aos 50 anos é sentir os alicerces abanar, é perceber que deixamos de ter retaguarda e que teremos de ser o nosso próprio porto de abrigo dali em diante. É o primeiro dia do resto da nossa vida.

Tu no bem-bom e eu, egoísticamente, a sentir a tua falta. Aquece-me o coração imaginar-te refastelado na tal nuvem, vestido com uma t-shirt onde se lê as palavras MISSÃO CUMPRIDA.
A bem da verdade, está tudo feito da tua parte, dossier fechado. Que nem sempre acertaste é um facto mas que fizeste o melhor que sabias é outro. E que eventualmente ficaram algumas coisas por fazer e que fui eu a terminá-las, é verdade. Mas isso afinal já fazia parte da minha missão e não da tua.

Pai, queria dizer-te que depois de ti nada ficou igual, e que todas as desconstruções e construções que vieram a seguir foram da minha inteira responsabilidade. E esta sou eu a construir o meu caminho, ciente que a maior herança foi o teu carácter. Às vezes ainda meto a pata na poça, mas na melhor das hipóteses ainda vou a meio da jornada e até ter direito à nuvem da missão cumprida ainda tenho muito trabalhinho de casa. E tu bem sabes que esta merda aqui em baixo não é para amadores.

Choro-te, principalmente naqueles dias em que não há sol que me aqueça. Não me leves a mal, não te quero preocupar. Estou só a desopilar. Outros dias pareço recém-saída de um curso de autodefesa ou condução-defensiva, tão crescida e auto-suficiente, incapaz de te incomodar no silêncio da tua nuvem. Já percebi que esta forma de vida bipolar faz parte. Somos todos a soma de todas estas partes.
Foram sete anos cheios, a transbordar vida com tudo o que isso implica. Nem fui feliz a menos nem fui feliz a mais. Fui o que tinha de ser. Em cada momento fui fiel a mim mesma, fui suficientemente humilde para agradecer e peremptoriamente altiva para me defender.

Podes fumar o teu cachimbo descansadinho que mãe diz que estou a fazer um bom trabalho.

Tua filha,


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